Rosalía, Madonna, 'Conclave': por que a cultura pop é fascinada pelo catolicismo?
12/11/2025
(Foto: Reprodução) De onde vem o fascínio da cultura pop pelo catolicismo?
Coral de igreja, hábito de freira, auréola nos cabelos. A catalã Rosalía entrou de vez no universo católico com seu disco “Lux”, lançado na semana passada. Não à toa: no ano pós “Conclave” (2024), e com o primeiro escolha de Papas que teve memes em tempo real, a Igreja Católica tem marcado presença no nosso repertório cultural como não fazia há algum tempo.
Volta e meia, a Igreja volta a ser pop. Madonna que o diga: a cultura tem um caso de amor e obsessão pelo catolicismo, o que não é exatamente recíproco. Isso, claro, é parte do apelo — ter a Igreja Católica condenando a sua arte é uma espécie de chancela. Até porque, se você não é ninguém, o Papa não vai se dar ao trabalho.
Mas o que na Igreja atrai tanto os artistas (e o público) e por que esse tema sempre volta? Entenda:
O Papa é mesmo pop
Primeiramente, existe um argumento muito simples: o catolicismo é um fundamento da sociedade ocidental. Por aqui, ninguém precisa ser padre (ou sequer batizado) pra reconhecer de longe uma referência à Igreja Católica.
Já é uma linguagem pop, digamos. Então, é claro que a cultura vai refletir esse repertório onipresente. “A gente é uma sociedade muito marcada pelo catolicismo como referência. Não tem como fugir disso”, diz David Moreno-Cárdenas, psicanalista e professor da Universidade Federal da Paraíba (UFPB).
Aliás, o catolicismo e a arte compartilham uma história milenar. Foi na Igreja Católica que a teoria musical ocidental se desenvolveu; foi atendendo a pedidos de sacerdotes, ou inspirados nesse universo, que muitos pintores fizeram suas obras-primas. Dessa relação, nasceram imagens que são referência até hoje, como "A Última Ceia", de Da Vinci, e "A Criação de Adão", de Michelangelo.
Ariana Grande faz referência à obra 'Criação de Adão' no clipe de 'God is a Woman'
Reprodução/YouTube
Mesmo hoje, muitos artistas aprendem música graças ao contato com ambientes religiosos, e a nossa percepção cultural ainda é muito atravessada por esses ensinamentos. Aprendemos a associar o coral e o canto lírico ao divino, por exemplo.
Apesar disso, nos Estados Unidos, falar em catolicismo não é a mesma coisa que aqui. A pesquisadora Helen Teixeira estuda religião na Yale Divinity School Ela reforça que, historicamente, o catolicismo é minoria nos EUA — tanto que imigrantes católicos, como italianos e irlandeses, foram racializados por não serem protestantes.
Então, se por um lado, artistas ítalo-americanas como Madonna e Lady Gaga querem questionar símbolos católicos, por outro, elas os usam como reafirmação da comunidade de onde vêm.
"Na cultura, esses símbolos religiosos vão além da fé individual de cada um necessariamente. Tem a ver também com uma afirmação cultural, comunitária, dessas comunidades de imigrantes", diz a especialista.
Já Rosalía vem da Espanha, um país em que o catolicismo é enraizado, e canta em treze idiomas no disco “Lux”. No caso dela, a estética religiosa facilita a compreensão desse trabalho: você pode não entender o idioma, mas basta ver as imagens (ou ouvir a música) para sacar a intenção. Já diria a cantora: "Sou uma cidadã do mundo".
Além do mais, essa temática também não faz mal comercialmente. Abordar (e incomodar) a igreja sempre tem um poderoso efeito de marketing — e hoje, mais do que nunca, a polêmica é um dos principais motores da fama e do dinheiro.
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O fascínio pela imagem
A Igreja Católica fascina artistas porque é rica em imagens e histórias, dois elementos primordiais para a cultura. Qualquer pessoa que já entrou em uma catedral ou abriu uma Bíblia sabe que, estética e narrativamente, não falta inspiração.
“A Igreja Católica cria uma estética própria para simbolizar a transcendência espiritual, essa abstração religiosa em ícones, em símbolos, em imagens. Isso, para a cultura pop, é um prato cheio. Então, ela pega esse conjunto de imagens e transforma isso, vai dessacralizar esses símbolos. Quando a gente vê os artistas se apropriando disso, tem muitas vezes ali uma crítica, uma contestação, uma ressignificação”, diz Mariana Lins, pesquisadora em cultura pop pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).
Ralph Fiennes interpreta o cardeal Lawrence no filme 'Conclave'
Divulgação
No mundo de hoje, em que os objetos são cada vez menos presentes — tudo é online, passageiro e pouco palpável —, os rituais e imagens tradicionais do catolicismo podem ter ganhado mais impacto. Por outro lado, quanto mais a tecnologia e o mundo mudam por intervenção humana, mais desafios a fé enfrenta.
É aí que entra um filme como “Conclave”, por exemplo: respondendo à curiosidade de como uma instituição milenar se mantém de pé nos dias de hoje. E como, por trás da faceta sagrada, os sacerdotes ainda são seres humanos (com crises de fé, inclusive).
Assim como o catolicismo tem uma infinidade de símbolos, usá-los pode ter vários significados. Afinal, uma igreja é, ao mesmo tempo, intimidadora e contemplativa; é misteriosa e ornamentada; é luz e sombra. Tudo depende de quem usa esse repertório, como, e por quê.
Da madona à Madonna
Madonna no controverso clipe de 'Like a Prayer'
Reprodução/YouTube
Na maior parte das vezes, recuperar (e desafiar) esse tema na cultura pop tem a ver com transgressão e liberdade. Afinal, o catolicismo lida muito com as ideias de controle e disciplina: tem a culpa cristã, o celibato obrigatório e os conceitos de pecado e perdão.
Esses conceitos formaram uma parte significativa da nossa sociedade, patriarcal e hierárquica, e recaem mais sobre uns que outros. Não à toa, o catolicismo aparece tanto na obra de artistas femininas: “tem esse lugar imaculado da mulher, que a Igreja Católica promove, e que essas mulheres vão chegar lá para subverter”, diz David.
Na religião católica, mulheres representam sofrimento, altruísmo e pureza, mas não ganham o mesmo tipo de adoração: como o próprio Papa Leão XIV reforçou recentemente, nem a chamada "Mãe de Deus" deve ser venerada.
Para alguém como Madonna, sempre coube questionar essa figura da mulher "santa" e passiva. Aliás, com um nome de batismo que significa "nossa senhora" em italiano, Madonna era predestinada a se relacionar com o catolicismo — e, claro, cresceu em um lar religioso e tradicional. Para ela (assim como muitos de nós), a Igreja foi a primeira referência de disciplina e regras na vida cotidiana.
Então, a cultura pop permitiu a ela quebrar tabus e desafiar um pouco essas normas. Mariana argumenta que Madonna sempre buscou exatamente essa subversão: ao reivindicar símbolos católicos, a cantora fala de feminismo, de sexualidade e de política. E coloca em xeque o que é sagrado, o que é profano e até onde o ser humano vai "em nome de Deus".
Através do humor, a série "Fleabag" mostra um raciocínio parecido com o de Madonna. A religião é o fio condutor da segunda temporada, em que a protagonista se apaixona (e tenta seduzir) um padre católico. Dessa forma, a autora Phoebe Waller-Bridge reflete sobre o lugar do corpo e do desejo feminino (e por que, por definição, ele é associado ao pecado).
“Vários autores falam sobre a utilização dessa estética católica para pensar essa forma de disciplinar, pela vida monástica, celibatária, o corpo e o desejo. Na cultura, essa iconografia muitas vezes se apresenta como uma válvula de escape para toda essa repressão”, afirma Mariana.
Lil Nas X em clipe de 'Montero (Call Me By Your Name)'
Reprodução/YouTube/Lil NasX
O catolicismo também serve para reflexões sobre a masculinidade, como fez o artista Lil Nas X. Gay assumido (e, portanto, condenado a "queimar no fogo eterno"), ele imaginou um inferno divertido no clipe de "Call Me By Your Name".
Assim, ele inverte um pouco a lógica da religião: já que não há espaço para ele no céu, Lil Nas não tenta se negar para alcançar a redenção — simplesmente "abraça o capeta".
Uma relação sociopolítica
O assunto nunca desaparece, mas há épocas em que a Igreja fica mais recorrente na cultura pop. Para Mariana, dá para fazer um paralelo: quando o catolicismo volta a ser tema, é porque, provavelmente, vem como resposta ou reflexão sobre o momento sociopolítico. E historicamente, o catolicismo costuma estar associado ao conservadorismo.
“Existe uma tendência nesse tema do conservadorismo, de vir à tona a partir desse repertório do catolicismo em momentos de muita tensão política. Ascensão do conservadorismo, da extrema-direita… tem uma ligação, sim".
Foi assim com Madonna, que lançou “Like a Prayer” durante o governo de Ronald Reagan e na epidemia da AIDS nos EUA; ou Almodóvar, que lançou “Maus Hábitos”, uma comédia sobre freiras, enquanto a Espanha se recuperava da ditadura franquista. Até Rita Lee usou Eva e o "fruto proibido", nos anos 70, em tempos de repressão e censura no Brasil.
Rita Lee se veste de Nossa Senhora ao abrir show dos Rolling Stones, em 1995
Reprodução
Entre os idiomas escolhidos por Rosalía em “Lux”, há letras em hebreu e árabe. Nada mais atual. Ainda que ela não tenha a intenção de acabar com os conflitos em Gaza através do disco, existe uma relação clara entre o que está acontecendo globalmente e a produção pop que ela entrega.
Afinal, essa é uma "missão" importante das obras pop: pra vender e fazer sucesso, é preciso dialogar com o mundo. Se o mundo está falando em Deus e religião, a cultura pop tende a seguir o mesmo caminho.