A repressão do governo da China contra mulheres que escrevem literatura erótica gay
03/07/2025
(Foto: Reprodução) Pelo menos 30 mulheres foram presas em todo o país desde fevereiro, conforme relatou um dos advogados de defesa à BBC. Nos últimos anos, o 'danmei', como é conhecido, conquistou um público extremamente fiel, especialmente entre jovens chinesas. Várias mulheres disseram que foram presas no país por escrever literatura erótica gay, ou danmei
X / errslance via BBC
"Fui alertada a não falar sobre isso", escreveu uma mulher antes de contar sobre o dia em que ela diz ter sido presa por publicar literatura erótica gay.
"Nunca vou esquecer. Ter sido levada para o carro na frente de todo mundo, aguentando a humilhação de ficar nua para ser revistada na frente de estranhos, vestindo um colete para as fotos, sentada na cadeira, tremendo de medo, meu coração disparando."
O perfil Pingping Anan Yongfu está entre pelo menos oito que, nos últimos meses, compartilharam relatos na rede social chinesa Weibo sobre prisões por publicarem ficção erótica gay.
Pelo menos 30 escritoras, quase todas mulheres na faixa dos 20 anos, foram presas na China desde fevereiro, disse à BBC um advogado que defende uma delas.
Muitas estão em liberdade sob fiança ou esperando julgamento, mas há ainda algumas sob custódia.
Outro advogado contou à BBC que muitas outras foram convocados a depor.
Elas publicaram seus trabalhos na Haitang Literature City, uma plataforma hospedada em Taiwan conhecida por seu conteúdo de "danmei", gênero de ficção erótica e romances gays.
O estilo é uma espécie de versão gay de Cinquenta Tons de Cinza: um relacionamento BDSM — termo em inglês que relaciona práticas de relações de poder de bondage (amarras), discipline ou domination (disciplina ou dominação), sadism ou submission (sadismo ou submissão) e masochism (masoquismo) — que termina em felizes para sempre.
Esse é um clichê comum, seja em cenários históricos, de fantasia ou ficção científica.
Ao longo dos anos, o gênero conquistou um público extremamente fiel, especialmente entre jovens chinesas.
Essas autoras estão sendo acusadas de violar a lei antipornografia da China por "produzirem e distribuírem materiais obscenos". Escritoras que lucram com esse tipo de conteúdo podem pegar mais de 10 anos de prisão.
A lei mira "descrições explícitas de sexo gay ou outras perversões sexuais". Representações heterossexuais costumam ter mais liberdade — obras de aclamados autores chineses, incluindo o ganhador do Nobel Mo Yan, contêm cenas sexuais gráficas, mas são amplamente disponíveis.
As repressões contra as autoras têm gerado revolta na internet. Usuários destacam que "criação não é um crime"
Instagram / Freewritersofhaitang via BBC
Embora autores de conteúdo erótico heterossexual já tenham sido presos na China, analistas dizem que o gênero é menos sujeito à censura.
Já o erotismo gay, que é considerado mais subversivo, parece incomodar mais as autoridades. Voluntários em um grupo de apoio às escritoras da plataforma Haitang disseram à BBC que a polícia já interrogou até mesmo alguns leitores.
Aqueles que relataram ter sido presos não quiseram dar entrevistas, com medo de represálias. A polícia da cidade de Lanzhou, no noroeste do país, que é acusada de liderar essa repressão, não respondeu à BBC.
Na internet, a repressão tem gerado debates — e uma rara oposição à lei.
"O sexo é realmente algo de que se deve ter vergonha?" perguntou um usuário da rede social Weibo, argumentando que as leis antiobscenidade da China estão defasadas.
Outro usuário escreveu que as mulheres nunca conseguem decidir o que é obsceno porque elas não controlam a narrativa.
Até mesmo juristas expressaram preocupação de que apenas 5 mil visualizações para algo considerado "obsceno" se qualifique como "distribuição" criminosa, diminuindo o limite para prender criadores.
Isso deixou Pequim tão desconfortável que as discussões estão desaparecendo. A hashtag #HaitangAuthorsArrested (Autoras Haitang Presas, na tradução livre para o português) alcançou mais de 30 milhões de visualizações no Weibo antes de ser censurada.
As publicações oferecendo aconselhamento jurídico também sumiram. A matéria de um proeminente site de notícias chinês foi retirada do ar. As contas das escritoras, e alguns de seus perfis, também estão desaparecendo.
Depois da postagem de Pingping Anan Yongfu viralizar, ela a deletou e escreveu outra, agradecendo aos apoiadores e admitindo que sua escrita violava a lei. Em seguida, ela excluiu o perfil.
Antes do seu último post, ela tinha escrito: "Eu sempre fui uma boa menina aos olhos dos meus pais. Mas naquele dia, eu não lhes trouxe nada além de vergonha. Eles nunca mais conseguirão andar de cabeça erguida."
Danmei: a realeza não coroada da cultura pop
Essas mulheres atuam nas sombras há muito tempo na China, onde a homossexualidade e o erotismo são estigmatizados.
Agora, expostas por investigações policiais, elas enfrentam consequências sociais tão brutais quanto as legais.
"Naquele momento, tudo que eu senti foi vergonha", postou uma escritora cujo perfil no Weibo pode ser traduzido para "o mundo é um grande hospital psiquiátrico".
Ela disse que a polícia a tirou da sala na faculdade e suas colegas assistiram à cena enquanto os agentes a acompanhavam para revistar seu dormitório.
"Eu ganhei meu dinheiro palavra por palavra, no teclado. Mas, quando tudo desandou, nada disso importou. As pessoas me trataram como se eu tivesse ganhado dinheiro sem nunca ter trabalhado."
Literatura erótica gay chinesa é inspirado nos mangás japoneses 'boys' love'
X / errslance via BBC
Outra mulher escreveu que os policiais foram "gentis" e a aconselharam a falar com um advogado e devolver seus "ganhos ilegais" para reduzir a pena. "Eu só tenho 20 anos. Tão nova e eu já arruinei a minha vida."
Uma terceira disse: "Eu nunca imaginei que chegaria o dia em que cada palavra que escrevi voltaria para me assombrar."
Uma autora que escreve romances danmei há 20 anos contou que não foi interrogada, mas disse que a repressão não vai fazê-la parar.
"É dessa forma que eu encontro felicidade. E eu não posso abrir mão das conexões que eu fiz com essa comunidade."
Inspirado nos mangás japoneses de boys' love, o danmei surgiu como um subgênero online nos anos de 1990. Desde então, tornou-se um enorme sucesso, com alguns romances aparecendo em listas internacionais de mais vendidos.
Em 2021, 60 dessas obras foram licenciadas para filme e adaptações de TV.
A propriedade intelectual mais cara teria sido vendida por 40 milhões de yuan (R$ 30 milhões, na cotação atual). Algumas das grandes estrelas da China, como Xiao Zhan e Wang Yibo, começaram suas carreiras em séries de streaming baseadas em romances de danmei.
Wang Yibo (à esquerda) e Sean Xiao Zhan (à direita) estrelaram séries que foram baseadas em romances de danmei
Getty Images via BBC
Em resumo, o danmei é a realeza rebelde da cultura pop, popular demais para ser ignorado, controversa demais para ser reconhecida.
E é justamente o carro-chefe da Haitang, que, em mandarim, é uma flor que floresce em todos os tons de rosa.
Apropriadamente, Haitang e danmei floresceram como espaços unicamente femininos, ainda que com protagonistas homens.
Em uma cultura em que o desejo sexual feminino é frequentemente policiado, o danmei se tornou uma forma de expressão codificada e criativa — um espaço onde mulheres podem escrever sobre desejos femininos por outras mulheres.
É justamente isso que torna o danmei tão "subversivo", afirma Liang Ge, professora de sociologia digital na University College London. Ele permite que mulheres "se desvinculem de realidades de gênero", muitas vezes associadas ao casamento e à maternidade.
Por exemplo, em histórias danmei, os homens podem engravidar e se sentem à vontade para serem vulneráveis, um contraste gritante com os relacionamentos muitas vezes desiguais com que muitas mulheres chinesas lidam na vida real.
"O danmei me liberta de pensar sobre todos esses perigos em potencial nos relacionamentos românticos tradicionalmente heterossexuais", explica uma escritora que está ativa no mundo danmei há uma década.
Mas os romances danmei não estão livres de críticas, porque alguns contêm cenas extremas e violentas.
"Como pai, quantos de nós conseguimos aceitar que nossos filhos leiam romances como esse, quanto mais escrevê-los?", perguntou um usuário do Weibo.
A idade das autoras também tem sido uma preocupação: algumas das pessoas entrevistadas pela BBC disseram que começaram a ler e escrever literatura erótica gay antes de completar 18 anos, algumas, com apenas 11.
Baseado em um romance danmei, o drama da TV chinese "Palavra de honra" fez sucesso
Getty Images via BBC
É um problema que a própria comunidade deveria reconhecer e enfrentar, afirma Ma, uma escritora de danmei que preferiu compartilhar apenas seu sobrenome.
Ela acrescenta que essa é uma questão que afeta todo tipo de conteúdo adulto, já que a China não impõe restrições de idade para acesso a esse material.
Mas o danmei, em particular, tem sido alvo de cada vez mais ataques na última década, com Pequim lançando uma série de campanhas para "limpar" a internet.
Em 2018, uma autora de danmei foi condenada a 10 anos de prisão por vender 7 mil cópias do seu livro entitulado Occupy.
'Os pagamentos na minha conta se tornaram a prova do meu crime'
À medida que as taxas de casamento e natalidade despencam e o líder chinês Xi Jinping promove um "rejuvenescimento nacional", a vigilância estatal sobre o danmei tem se intensificado, diz Ge.
"O governo chinês quer promover os valores tradicionais da família, e gostar de romances danmei é visto como um fator que torna as mulheres sejam menos dispostas a ter filhos", explica.
Esta é a segunda onda de prisões em massa em menos de um ano — no ano passado, cerca de 50 escritoras da plataforma Haitang foram processadas. Uma autora famosa, que ganhou cerca de 1,85 milhão de yuan (R$ 1,4 milhão, na conversão atual), foi condenada a quase cinco anos de prisão.
As duas repressões são semelhantes, de acordo com um advogado que representou algumas das acusadas no ano passado, "mas, desta vez, nem mesmo aquelas que têm uma participação mínima foram poupadas".
Uma advogada oferecendo aconselhamento jurídico gratuito disse que mais de 150 pessoas buscaram por orientação em apenas dois dias. Muitas delas entraram em contato ainda não foram acusadas, mas estão aterrorizadas com essa possibilidade.
"Isso é um exemplo clássico de offshore fishing", diz um advogado que escreveu um guia prático para ajudar autoras da Haitang. O termo se refere ao abuso de autoridade da polícia local — neste caso, aqueles policiais em Lanzhou intimaram escritoras em diversas outras regiões, possivelmente extrapolando sua jurisdição.
Várias relataram ter que pagar do próprio bolso para viajar até Lanzhou. Uma delas postou que os 2.000 yuans (R$ 1.500 aproximadamente) que ganhou com dois livros publicados na Haitang pagaram pela passagem aérea.
No ano passado, todas as prisões foram feitas pela polícia do condado de Jixi, no leste da China.
Governos locais endividados já recorreram a esse tipo de ação antes para arrecadar dinheiro por meio de multas, chegando, às vezes, a forçar advertências do governo central.
Crimes cibernéticos são particularmente vulneráveis a esse tipo de prática, diz o advogado: "basta alegar que um leitor local foi corrompido".
Jovens chineses estão optando cada vez mais por não se casar e não ter filhos, o que preocupa o governo chinês
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As autoras de danmei sabem que a tolerância pode ser instável. Por isso, contornam a censura com metáforas. "Fazer o jantar" significa sexo; "utensílio de cozinha" é código para órgãos genitais masculinos.
Ainda assim, a repressão recente as pegou de surpresa. "Um telefonema destruiu meus sonhos" foi como uma escritora descreveu a ligação da polícia.
Elas acusam os policiais de revistar seus celulares sem mandado. E disseram que seus crimes foram avaliados somando as visualizações de cada capítulo — um método que, segundo elas, era enganoso, pois provavelmente exagera o número real de leitores.
Outra autora de danmei postou: "Eu escrevi na Haitang por anos, com apenas um punhado de leitores. Então, aquelas histórias ignoradas acumularam mais de 300 mil cliques, e os 4.000 yuans em pagamentos na minha conta se tornaram evidência do meu crime."
É difícil saber se isso significa o fim de suas carreiras na Haitang.
"Se eu pudesse voltar atrás, ainda escolheria escrever. E eu continuarei escrevendo", escreveu o perfil Sijin de Sijin.
"Agora, só posso esperar que a lei veja além das palavras na página — e veja a garota que pulava refeições para economizar dinheiro, a garota que vendeu o cabelo para comprar uma caneta, a garota que acreditou que sua mente poderia abrir caminho através do destino. Espero que nos dê uma chance justa a todas nós."